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Lena d’Água: “Sem dúvida que o ponto alto da minha carreira e da minha vida é agora”

Subiu pela primeira vez a um palco em 1974 e começou, na música portuguesa, a sua própria revolução. Fez bandas, desfez, encheu palcos sozinha e bem-acompanhada. Viveu mil vidas, numa vida só. Todas suas. 65 anos de vida, 46 de carreira. Gémeos de signo, como que numa premonição das duas pessoas que seria sempre ao mesmo tempo. O Ardina entrevistou as duas: Helena Águas e Lena D’Água.

Foto: Rita Carmo

Como descreve a sua infância?


Foi incrível, foi uma infância muito particular. Quando eu nasci o meu pai era muito famoso por causa do futebol. Era o capitão do Benfica e jogava na seleção. Eu fui a primeira a nascer, e o meu pai estava assim a meio da carreira dele. Quando eu vim ao mundo, a minha casa, a minha vida, a minha família, era muito diferente da das miúdas com quem eu andava na escola por causa disso. Nós saíamos de casa e tínhamos sempre bandos de criança a gritar “Águas! Benfica!”.


Nós somos três [irmãos], crescemos e vivemos a maior parte da nossa vida num bairro em Benfica. Era um bairro social com casas gigantes, com imensos quartos e imensos filhos - havia famílias com 14 filhos. E nós estávamos numa casa bastante boa com quintalzinho. Foi uma infância muito especial, os meus pais davam-se muito bem. Ainda vivemos com a minha avó Sara, mãe da minha mãe, até à morte dela em 64. Por causa do nome da mãe da minha mãe é que a minha filha se chama Sara.


Há uma passagem muito interessante na nossa infância que foi a passagem por Viena, que foi a última época em que o meu pai foi jogador de futebol depois de se despedir do Benfica, ao fim de 13 anos a jogar lá. Ele fez um último ano no Áustria de Viena e nós fomos todos, com a avó Sara e tudo. A nossa passagem por Viena foi muito especial, sobretudo para mim, porque eu já sabia ler e - não falando uma palavra de alemão - os meus pais acharam por bem pôr-me na escola. Eu tinha imensa vergonha de falar, mas passado pouco tempo eu já entendia muito e tenho imensa memórias. Os elétricos de três carruagens vermelhos, o Danúbio, a neve, os pombos, a lista da minha mãe com as palavras para ir fazer as comprinhas na mercearia e na padaria. Só estivemos lá um ano. Eu adorei.


Foi uma infância feliz. Guardo imensas memórias, tenho sorte. Penso que o que eu vivi é um retrato giro de uma época que já passou.



Quando é que começou a cantar?


Voltamos à infância. O meu pai adorava música, comprava imensos discos quando ia jogar com o Benfica, discos que não havia cá. O que ele preferia era Tony De Matos. A minha mãe também gostava imenso de cantar, mas era mais coisas da igreja. Ela tinha uma voz muito bonita e o meu pai também, era uma casa muito musical e com música muito boa.

Eu comecei a cantar assim, em bebé numa casa com gira-discos e telefonia.

A passagem por Viena foi importantíssima porque nós fomos ver um Concerto dos Pequenos Cantores de Viena e eu fiquei apaixonada por aquilo. Ainda por cima eu conseguia cantar tudo e lembro-me de me pôr em cima de um banquinho lá na sala, lá em Viena, punha o gira-discos a tocar - o meu pai comprou 3 ou 4 EPs dos Pequenos Cantores de Viena - e eu conseguia fazer aquilo tudo e aquilo dava-me um prazer tão grande e uma satisfação, que eu pensava que estava no céu.


Mas eu tinha imensos interesses e no liceu, como era boa estudante - não estudava muito, mas era muito esperta e interessada - o meu pai resolveu dar-me uma prenda que eu pedi. Foi uma guitarrinha acústica. Eu tinha 14 anos e como tinha um amigo que tocava umas canções do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho e outras coisas, aquilo para mim era fantástico. Foi esse meu amigo que me ajudou a aprender os acordes certos e

em pouco tempo já conseguia tocar músicas e cantar ao mesmo tempo. Lá enfiada no meu quarto a aprender as músicas de uma cantora que eu descobri na altura que é a Melanie Safka, em especial um disco dela sozinha com a guitarra [Melanie Safka at Carnegie Hall]. Aprendi as músicas todas, comprei um livro das canções e quando perdi a vergonha comecei a mostrar aquilo que eu era capaz de fazer. Eu era super tímida, ficava muito corada e depois sentia-me corar e ainda ficava pior (risos). Eu nunca, nos primeiros 20 anos da minha vida, suspeitei que eu ia acabar por subir a palcos e cantar para tantas pessoas. Isso não era uma coisa que me passava pela cabeça. Foi assim, foi sem querer.


Uma das primeiras atuações que fez em público foi em 1974, numa reunião de moradores do Bairro de Santa Cruz. Como foi a experiência de pisar um palco pela primeira vez?


Foi no ginásio da Escola da Mata. E lá está, foi esse meu amigo que me ensinou a fazer os acordes, chamava-se João Lisboa, que no final subiu a um palco pequenito para cantar dois ou três temas. Devia ter sido o “Vejam Bem” e eu estava na plateia. Sem eu estar à espera e sem ele me ter avisado chama-me porque ia cantar o “Pode Alguém ser Quem não é” do Sérgio Godinho. E quando ele me chama para ir fazer aquela linha de flauta a assobiar eu nem sei como é que consegui. Mas consegui, não me atrapalhei, consegui assobiar, cheia de medo de falhar. A seguir ele passa-me a viola dele e ele sabia que eu sabia a letra e os acordes do “Ne Me Quitte Pas” do Jacques Brel. Não falhei e foi um alívio tão grande quando acabei… Foi o meu batismo assim sem saber como. Se calhar se ele me tivesse avisado não tinha corrido tão bem.

Foi uma das primeiras mulheres em Portugal a ser vocalista de uma banda de rock, com os Beatnicks. Como é que foi lá parar?


No carnaval de 75, eu e [alguns] amigos resolvemos ir a um parque de campismo em Monsanto, para uma festa que ia haver. Lá fomos, metemo-nos no autocarro, éramos para aí seis ou sete. Lembro que um desses amigos, o Manel, tinha começado a dar-se com pessoal que não fumava só ganzas, e aquilo estava a começar a descambar. Ele era muito novo, tinha 18 anos, e nós andávamos preocupados com ele. Nesse fim de tarde, o Manel - que era assim o meu amigo mais querido - veio ter comigo e disse: “Lena, já volto. Está ali não sei quem”, a referir-se a um daqueles amigos. “Está bem, não te demores”, e eu fiquei à espera. E às tantas o Manel nunca mais voltava, e eu preocupadíssima começo a ficar super triste. Nós estávamos cá fora, mas eu começo a entrar numa tristeza tão grande que fui para o meio da confusão lá dentro, porque me apetecia chorar e não queria estar a chorar ali à frente dos meus amigos.


Sozinha a chorar, sentadinha, toda a gente a dançar mascarada, aos saltos e aos gritos. Nisto, passa por mim, com umas cervejas nas mãos, um rapaz por acaso muito lindo, cabelos compridos, barba e olhos escuros… Quando me vê cheia de lágrimas, olha assim para mim e diz, “Então?”. Eu olho para cima e parecia que estava a ter uma visão, porque ele era muito bonito, e ficou a olhar para mim. Eu, toda ranhosa, a primeira coisa que me lembro de ter dito foi “qual é o teu signo?” (risos).

Fomos os dois lá para fora - nem dissemos o nome um do outro - e quando chegamos lá fora, os amigos dele estavam misturados com os meus amigos. Foi assim que fiquei a perceber, com a conversa, que ele tocava. Quando nos conhecemos eu não sabia que ele era músico, nem ele sabia que eu era, foi mesmo uma cena de filme.


E pronto, eu soube que ele estava a refazer uma banda onde tinha estado, mas que tinha acabado por causa da guerra colonial. Na altura na rádio passavam os cantores românticos, como a Simone e os festivais da canção e aquelas coisas assim, que para a juventude não eram muito apelativas. Nós devorávamos os Beatles, os Stones e os The Who, e os outros americanos, os Beach Boys. Eles já tinham feito um punhado de canções, e faziam covers dessas tais bandas. E então ele disse “Ah tens que aparecer lá na Amadora, vai assistir lá a um ensaio. É muito fácil chegares a minha casa: fica perto da estação, chegas ao café Pigal e perguntas onde é que mora o Ramiro”.


Passado uns dias meti-me no comboio, entrei no café Pigal, e olhei para as mesas para ver quem parecia mais jovem. Numa das mesas vi uns rapazes, perguntei se alguém sabia onde morava o Ramiro, e fui com um deles até à casa dele.

E foi assim, depois o Ramiro foi-me levar ao comboio e na descida da casa dele - eu lembro-me bem desse momento, foi um momento inesquecível - ele pôs a mão assim à volta da minha cintura, e eu gostei.


Lena D'Água e Ramiro Martins, ex-marido

Começamos a namorar, depois casamos e tivemos uma filha. Foi tudo naquele ano, fiquei logo à espera de bebé depois de pouco tempo, porque eu achava nos meus 18 anos - eu era uma criança (risos) - que evitar filhos era como se fosse negar aquilo que estávamos a viver. E pronto, a Sara nasceu mesmo no fim do ano, no dia 31.


Eu costumava ir aos ensaios, fazia os coros (que eu adorava, fazer coros sempre foi uma coisa boa para mim, cantar com outras pessoas), até que num ensaio disseram “tu devias era começar a ir connosco fazer concertos”, mas na altura eu ainda estava de bebé.


Foi então na altura em que teve a sua filha que começou a ser vocalista dos Beatnicks?


Segunda vocalista, porque eles tinham o Tó Leal. Quando a pequenita já tinha 5 meses - na altura nós tínhamos o apoio gigante dos nossos pais - era mais fácil sairmos e irmos tocar. Fizemos praticamente dois anos de concertos, numa altura em que ainda não havia autoestradas. Demorava-se horas e horas para chegar a qualquer sítio, normalmente não ficávamos a dormir porque não havia pagamento suficiente para isso (risos). Eu adorava. Infelizmente não há nenhum registo meu com os Beatnicks, nada. Tenho pena, mas pronto, na altura ainda não havia essa facilidade… agora gravo tudo. Tenho alguns concertos dos anos 80 gravados pelo técnico de som, e continuo a fazer isso. Também para perceber onde é que eu posso melhorar, é um instrumento de trabalho incrível. E também fica para o futuro. Uma coisa são os discos, outra coisa são os concertos ao vivo: acontecem assim coisas que ninguém está à espera.


Como é que foi a saída dos Beatnicks?


A Sara nasceu quando eu estava a acabar o curso do Magistério Primário. Na altura do 25 de abril eu estava na universidade, no primeiro semestre em que ia fazer sociologia no ISCTE. Mas depois não havia aulas, não havia professores, foi uma altura de grandes movimentações. Houve imensa gente que fez vários anos de faculdade com passagens administrativas, sem praticamente haver aulas e isso para mim também não dava. Foi em 75, já eu estava com uma barriguita pequenita, que decidi fazer a inscrição na Escola do Magistério Primário. Era um curso que também me interessava, eu sempre adorei crianças, psicologia e pedagogia, e depois havia o resto: música, movimento, drama, linguística… Adorei fazer aquele curso. Mas pronto, já com a bebé, não é? Às vezes levava-a para as aulas de psicologia, e era o nosso “porquinho da Índia”.

Mas acontece que o Ramiro ajudava o pai, que tinha um negociozito de distribuição de leite pela Amadora até Oeiras, e depois aquilo foi crescendo. Durante os primeiros tempos ainda vivemos no bairro Santa Cruz, ao lado dos meus pais, mas depois havia um rés do chão mesmo do outro lado, que era dos meus sogros, onde nós vivemos até depois de nos separarmos.


O que acontecia era que eu deixava a pequenita, ia para as aulas, chegava das aulas, e ia buscar a pequenita. Mas depois eu não via o Ramiro: ele de manhã saía antes porque o pai ia lá bater na janela para o ir ajudar na distribuição do leite. Depois à tarde, quando ele finalmente estava livre daquilo e eu da escola, ele ia tratar das suas músicas e fazer obras no estúdio. Quando ele chegava a casa, já eu e a pequenita estávamos a dormir. Isto ao final de uns meses já não fazia sentido nenhum, porque eu praticamente não o via. Eu tinha vinte anos, numa casa em que eu não tinha uma varanda ou um quintal, e na casa dos meus pais tinha lá quarto, se quisesse. Às tantas aquilo começou a ficar complicado, e eu acabei por voltar para casa dos meus pais, foi chato. Enfim, foi difícil a nossa separação por causa da criança.


Ainda fiz um concerto no Coliseu, foi o último. Já não estávamos juntos e fiz essa primeira parte do Jim Capaldi, em fevereiro de 78. Passados quinze dias de já estar fora da banda, recebo um telefonema para ir fazer coros para o Festival da Canção. Em quinze dias! Os Beatniks não davam dinheiro, o que se ganhava era para a gasolina, um prato para a bateria, o que fosse preciso. E eu tinha uma filha pequena, estava separada, e recebo esse convite para ir fazer uns coros no Festival da Canção. A ganhar pouco, é certo, mas já era algum dinheiro.


Eu nunca tinha ganho dinheiro a não ser antes de entrar na faculdade. Tive dois trabalhinhos: um deles foi a organizar um arquivo de livros censurados. Ganhei algum dinheiro mas pouca coisa. E eu a ver aquela cena por dentro. Eu era anti-fascista, apesar de a minha família não ter nenhuma afiliação política. Mas eu tinha dezassete anos e queria ver o que se passava no nosso país, não era tontinha… toda a gente sabia o que se estava a passar. Aquilo era tipo um capacete cinzento em cima de toda a gente.


Acontece que depois acabou por fazer os coros no festival da canção, na música que ganhou, mas a sua carreira explodiu nos Salada de Fruta com a “Robô”. O que é que mudou na sua vida a partir daí?


Bem, voltei a ser famosa como quando era criança. Eu tinha conhecido o Luís Pedro e o Zé Ponte ainda nos Beatnicks, porque fui com eles aos Açores em 77. Eu comecei a fazer os coros para os Gemini. No final de 78 eles telefonam-me para ir cantar, porque houve um desentendimento com a Adelaide Ferreira. Eles disseram “Lena, tens de vir. Tens de ser tu a fazer estas vozes”. Nestas nossas reuniões de estúdio, as vozes ligavam muito bem, e o Luís Pedro e o Zé eram super criativos. Então em 80 fazemos a banda. O disco é gravado a seguir ao verão, o “Sem Açúcar”, para o qual chamamos o Guilherme Inês e o [José] Carrapa, bateria e guitarra, que não tínhamos.


Eu adoro esse disco, as vozes… Aquilo era um bocado conceitual. Mas o “Robô” foi assim um bocado “woooow”. Aquilo era um jingle que o Zé e o Luís Pedro tinham apresentado a um cliente, mas a marca não aprovou. Às tantas, num ensaio, o Zé começou a fazer aquela malha de baixo - porque o Zé era o homem das músicas e o Luís Pedro das letras. O pessoal começou a tocar e aquilo ficou a soar muito bem. O Luís Pedro tem aquela ideia genial do “olha o robô”, e a partir daí há um antes e um depois. A partir daí foi só concertos e concertos, até que depois fui despedida (risos). Eu subi tanto como estrela que os gajos ficaram um bocado lixados, não queriam cá vedetas. E os fotógrafos gostavam era de pôr a Lena D' Água nos jornais e nas revistas de música. Isso tudo já lá vai, e agora os sobreviventes são só eu e o José Carrapa… Mas pronto, foi aquela questão dos egos que acontecia sempre nas bandas. Fiquei um bocado… aquilo bateu-me um bocado mal.



Além de ser conhecida pela música, também se destacava pela forma extravagante de vestir. Porque é que as roupas que usava eram consideradas extravagantes?


Porque era tão simples… grande parte das coisas que eu usava era eu própria que as fazia, porque podia escolher os tecidos.

Eu cresci a ver as lojas hippie, as túnicas, … Naquela altura em Portugal não tínhamos acesso a essas roupas. As pessoas viajavam (quem podia) para comprar coisas diferentes, e começam a aparecer as túnicas indianas e os panos de Marrocos - isso não havia cá. Eu também nunca quis ser uma Simone de Oliveira, com aqueles vestidos e aquelas coisas… aquilo era tudo do tempo dos nossos pais.

Há uma coisa que eu nunca disse, mas eu não tirava os pelos de debaixo dos braços. Nos vídeos que estão no Youtube, como eu estou com uma túnica com mangas, não se vê. Mas eu fiz uma sessão para o “Perto de Ti”, em 82, … o David Ferreira até se passou (risos). Eu fiz uma sessão na praia com um vestidinho super lindo, de pano cru - era aquilo que eu gostava, de inventar com umas cordas e umas coisas…. Nessa sessão eu assumi completamente, e na altura aquilo era … Enfim (risos)… A cara do David!


Então não era só a roupa, a própria Lena também era extravagante?


Sim! Porque o palco, para mim sempre foi - a partir daquele meu batismo inesperado (risos) - um espaço de total liberdade. No fundo é assim também que eu vejo a minha vida. Eu sinto-me agora não tão livre, mas só por causa dos meus cães e dos meus gatos (risos)!


Mas eu sentia já isso, a liberdade: quando eu estou no palco eu faço o que eu quiser, não vou estar preocupada. A não ser lembrar-me das letras, mas depois há um dia em que eu vejo o Lennon a dizer que tinha brancas das letras, e pensei assim “pronto, se o Lennon tem brancas, assume e está na boa, vamos lá”.


Nunca usei o meu corpo para fazer aqueles maneiros de sex bomb. Nunca, nunca. Não tens uma única fotografia em que eu esteja a fazer “olha, toma lá, querias”. Nada, nunca. Até porque sempre me senti também, por dentro, um bocadinho Peter Pan, um bocadinho “bissexuada”. Ainda por cima como eu sou Gémeos (risos), eu sinto e sempre senti que tenho um rapazeco dentro de mim. Ainda hoje, com 65 “mocas”, eu sinto a rapariguita e o rapazeco dentro de mim. E já na altura era assim, queria lá saber o que eles pensavam.

É curioso, pois mesmo que nunca tenha feito por isso, foi considerada um sex symbol. Isso alguma vez a deixou desconfortável?


Não, achei graça. Só comecei a ouvir isso passados anos, na altura não ligava nenhuma. Como disse, não me rapava, não fazia ginástica … não havia essas coisas que há agora para ajeitar a maminha aqui e o bronze ali. Na altura não me preocupava com isso.


Como é que começou a sua carreira a solo?


Acho que foi quando me despediram [dos Salada de Fruta]. Foi em 1981, com o Luís Pedro: ele disse “então vocês não a querem? Eu quero, vou com ela!”, e ele saiu comigo. E pronto, as composições que até ali ele fazia para uma banda, começou a fazer para uma cantora. Formamos a banda em três tempos, a Atlântida. A minha carreira a solo começou aí, porque eu não era da banda Atlântida, a banda Atlântida era a banda da Lena d’Água. O Luís Pedro já escrevia bastante para a Lena d’Água, mas a partir dali foi mesmo só para mim. A nossa parceria durou até 86, mas ele ainda participou num outro disco em 87. Foram ainda uns aninhos em que ele foi o meu compositor. Eu tenho duas ou três letras apenas.


Foi ali que começou: eles expulsaram-me, e primeiro custou-me um bocadinho, foi um bocadinho chato. Ainda por cima tinha também sido despedida do outro trabalhinho onde servi à mesa durante cinco dias, porque pensavam que eu era comunista (risos)! Fizemos a banda e gravamos o primeiro single, “Vígaro cá, vígaro lá”, ainda nesse ano.



E foi aí que “explodiu”.


Foi. Aí é que começam a ser feitos, gravados e tocados ao vivo os grandes êxitos da Lena d’Água. Porque do tempo dos Salada de Fruta as pessoas sabem que há o “Robô”; antes disso, o álbum “Sem Açúcar”, que naquelas 10 canções tem o “Como se eu fosse tua”, que o Luís Pedro escreveu para mim, e eu eu nunca mais voltei a cantar. Essa música já era só para mim, e era bem gira. Cantei-a uma vez à capella já há muitos anos. A seguir é o “Jardim Zoológico”, “Papalagui”, “Sempre que o amor me quiser”, “Dou-te um doce”, … tudo isso. Isso já é Lena D’Água.


Sabemos que era muito próxima de António Variações. Como era a vossa relação?


Éramos muito próximos, mas não estivemos muitas vezes juntos. Conhecemo-nos porque estávamos na mesma editora, a Valentim de Carvalho. A primeira vez que o ouvir fartei-me de rir, achei que era um doido. Ele estava numa sala e nós estávamos noutra ao lado, e começamos a ouvir “uhoooaa uhooooa”. Nós pensamos “há cada maluco meu, o que se passa ali?”. Antes de o ver, antes de o conhecer, aquilo que ouvi foi mesmo uma cena fora, de outro mundo.


E não me coíbo de o confessar, a primeira reação àquele som que não era igual a nada que a gente conhecesse foi tipo “what?”.

E depois conheces a pessoa. Eu não sei se foi no mesmo dia, se calhar até foi. Por estarmos na mesma editora e participarmos em vários eventos, no jantar da editora, em coisas para a rádio, acabei por estar com ele algumas vezes.


Uma vez ele ia cantar no Trumps e eu fui lá dar-lhe um beijo. Era uma pessoa adorável, linda, querida de morrer. Quis que eu ouvisse, lá na sala da alta fidelidade, o primeiro álbum dele, ainda não estava pronto o disco. Quando ele viu que eu estava cá fora ao pé dos pianos ele disse “Ah, Aguinha, Aguinha!”. Ele tratava-me por “Aguinha”, era um doce, era uma pessoa tão fofinha, tão querida. Então eu entrei para ouvir alguns temas que ele tinha estado a mostrar. Lembro-me de dizer “Sabes o que é que eu acho António? Tu tens uma raiz portuguesa tão grande, devias meter um instrumento tradicional, uma coisa acústica”.


Lena D'Água com António Variações

Eu adorei conhecer aquele homem. Tínhamos treze anos de diferença, ele era muito mais velho. Ele morreu com 39 anos, e eu tinha 20 e tal. Foi um encontro maravilhoso. Depois gravei aquelas cinco canções – a família dele trouxe-me as cassetes para eu escolher, e eu escolhi cinco temas daqueles que ele tinha deixado ainda por gravar em estúdio.

Eu tinha feito a pré-produção em casa, tive mais de um ano com as cassetes. Ainda por cima eu canto na mesma tonalidade do António, ou seja, nem foi sequer preciso mexer nas tonalidades das gravações. Respeitei ao milímetro a estrutura das canções, tal e qual ele as tinha deixado gravadas.



Nos anos 80 promovia-se a ideia do “sex, drugs and rock n’ roll". Nunca escondeu que seguia esse estilo de vida. Porquê?


Porque toda a gente fumava, os meus amigos todos fumavam ganzas. Não havia drama nenhum. Aliás, eu praticamente não fumava cigarros, mas de vez em quando a gente encontrava-se e havia sempre uma ervazita para enrolar. Isso não trazia nenhum mal ao mundo. E também tive muitos namorados, muitas cenas rápidas. Eu durante essa primeira parte da minha vida apaixonava-me rapidamente, mas depois de repente caia em mim e ele não ficava muito tempo a chatear-me (risos).


Alguma vez sentiu que esse estilo de vida tenha sido problemático para si?


Só muito mais tarde, praticamente em 1990 é que houve uma paixão, um namorado… aí resolvi experimentar, fumar aquela porcaria que tinha matado o meu amigo Manel. Eu achava que já podia experimentar, com 33 anos. E já tinha experimentado também cocaína nos anos 80, mas isso nunca me interessou nem me fazia falta nenhuma. Não me custou nada não voltar a usar aquilo, e também usamos pouco e foi facílimo para mim largar. Agora as outras, é mesmo horrível. No meu caso “só” fumei, mas aquilo é uma teia diabólica. É horrível, demorou-me imenso tempo até conseguir sair completamente. Foram os anos 90 praticamente todos a entrar e a sair, a metadona, … que horror. Mas pronto, já passaram vinte e tal anos e nem gosto muito de falar nisso, foi uma estupidez.

Arrependo-me de quase nada na minha vida, mas arrependo-me. Sinto que perdi tempo, dinheiro, … não gastei nada que não fosse meu, mas acabei por fumar no meu apartamento.

Mas pronto, o que se há de fazer? Já faz 23 anos desde a última vez. Pensei: “fogo, chega disto!” e voltei, aos poucos, a recuperar a minha vida, as minhas pessoas, os meus sítios. E depois aos poucos a música também, porque aquilo me afastou um bocadinho. Fiz as “Canções do Século”, mas isso não era uma coisa mesmo minha. Era uma coisa dividida, o que foi ótimo para mim. Gostei muito de a fazer, gostei muito de fazer o disco e esses concertos todos. Mas eu estava em grande sofrimento… foi muito difícil essa minha década de 90 - sobretudo de 94 a 96 - foi assim uma coisa muito, muito difícil.


Em 2002, foi para o Big Brother. Porquê?


Eu andava a fazer a Billie Holiday já desde 1999, e ganhava-se pouco nos clubes de jazz. Eu tinha visto o primeiro Big Brother, e aquilo tinha-me interessado muito como experiência social. Depois fizeram o primeiro “Famosos”. Aquilo depende das pessoas que lá estão, há umas pessoas que curtes mais, outras que curtes menos…


Eu telefonei para a produção e perguntei se havia vaga. Eu precisava de ganhar dinheiro, e sabia que eram 500 contos por semana… 2500 euros por semana, para lá estar e ninguém me obrigava a fazer nada? Oh!

E pronto, disse “olha, se houver lugar eu alinho”. Meteram-me fora logo ao fim de quinze dias, eu com o meu feitiozinho!… (risos) Foi uma experiência incrível. Muito difícil, porque eramos treze pessoas ali dentro. Aquela casa era minúscula, tínhamos frio lá dentro, os quartos eram mínimos, o quintal era mínimo, era novembro e estava frio, … aquilo era muito difícil (risos).


Houve uma pessoa que me fez imenso jeito lá, porque ele compreendia-me e eu a ele, que é o Claúdio Ramos. Gostei imenso de o conhecer, e até hoje gosto dele. Foi uma pessoa especial para mim ali dentro, assim como o Vítor Norte.

O melhor momento desses dias foi quando uma borboleta me poisou na mão, e eu mostro às câmaras… foi o melhor momento, aquela borboleta ter-me visitado. Há quem diga que são contactos com os nossos anjos.


Lena D'Água na plateia do Big Brother Famosos em 2002

Depois do Big Brother, saiu das luzes da ribalta?


Não, não… quer dizer, se as luzes da ribalta quer dizer aparecer na televisão, aí sim. Mas continuei sempre a fazer concertos, eu nunca tive outro trabalho e nunca tive rendimentos sem serem os do meu trabalho. Tenho um repertório gigante, posso cantar as músicas que eu quiser… No princípio dos anos 2000 fiz a Bille [Holliday], depois fiz a Elis Regina, depois fiz o meu álbum “Sempre” ao vivo no Hot Club, que foi editado em 2007, gravado ao primeiro take. Continuei sempre a fazer alguns concertos, às vezes só com um trio. Mas há muito trabalho que se vai fazendo e que não aparece na televisão: uma pessoa faz casinos, festas particulares, um teatrinho não sei onde. Fazia piano e voz, guitarra e voz, gosto imenso de o fazer. O que me faltava, realmente, eram originais, músicas novas.




Os Linda Martini gravaram uma versão do “Sempre que o amor me quiser”, os Primeira Dama também fizeram o arranjo de cinco temas meus porque tinham poucas canções para concertos ao vivo… putos, com dezoito, vinte anos, foi lindo! Houve assim umas cenas engraçadas a acontecer.


Em 2014 morre o Luís Pedro Fonseca. Nós tínhamos uma relação assim um bocado tempestuosa, desde o princípio. Depois cada um seguiu a sua vida, mas ficou sempre ali qualquer coisa. Ele nunca mais fez assim nenhum trabalho para nenhum cantor ou cantora como aquele que fez comigo, e eu nunca mais tinha tido um compositor como ele, que fizesse canções que me servissem como alta costura, aquilo era mesmo feito à minha medida. Infelizmente ele teve uns problemas de saúde, e em 2014 lá foi embora.


Depois, em 2016 – imaginem, no ano em que eu faço 60 anos - os They’re Heading West convidam-me para a Casa Independente, o Benjamim convida-me para o CCB… um ano ou dois antes o Pedro da Silva Martins, que era júri naquele festival alternativo da canção onde eu fiz dois temas à capella, disse “Lena, eu vou ter de escrever para ti”. Então, em 2016, eram eles todos a ligarem-me ao mesmo tempo, e eu a suspirar. Porque eu, ao longo dos anos, fui pedindo canções a alguns compositores, mas desde sempre foi muito difícil. Acho que porque as minhas canções com o Luís Pedro marcaram demasiado fortemente a memória, e depois ninguém se atrevia. E pronto, de repente já tinha banda, já tinha canções, ainda não tinha editora, ainda não tinha management…, mas depois quando foram mostradas as maquetes (já boazinhas, ainda foram praticamente dois anos de trabalho antes de mostrarmos às editoras) a Universal e a Sony ficaram as duas interessadas em editar o disco. Como eu estava longe de editoras há mais tempo, deixei-os falar entre eles e pronto, finalmente o disco é editado. Já vai fazer três anos agora na primavera que vem, parece mentira!

Que impacto é que o “Desalmadamente” – esse tal disco que lançou em 2019 – teve, não só na sua vida profissional, mas também na sua vida pessoal?


Na pessoal, uma pessoa fica contente, antes mesmo do disco sair tu já sabes que são altas canções com imensas possibilidades, nós já sabíamos. Foi um trabalho gigante dos músicos, porque o Pedro nos entregou a letra e uns acordes super simples, o esqueleto das canções. Depois aquilo foi interpretado e experimentado, o trabalho deles é incrível no álbum, e o meu também, claro.

Foi muito bom esse trabalho de preparação. Eu gosto muito, mas dá muito trabalho, e na altura não tínhamos editora e ninguém estava a receber dinheiro, saiu do pêlo. Eles a esta hora devem estar a acabar uma reunião, porque ainda não ouvimos, mas já temos as novas canções do Pedro. Ai, até me estou a comover (risos)!



Em retrospetiva, qual considera que foi o ponto mais alto da sua carreira?


É agora! Eu agora entro num palco e tenho pessoas de todas as idades: da minha idade, dos 40, da idade da minha filha, da idade do meu neto… A cantarem as canções, a emocionarem-se, a mandarem-me mensagens incríveis nos Instagrams desta vida. Há imensos bebés que me adoram, adoram a minha voz e adormecem com o meu disco a tocar. Não há nada de melhor.


Teres um corpo todo bonito, teres 30 anos, e seres toda enxuta e toda gira? Opá, isso nunca me deu felicidade. O meu casamento, aquele grande amor, durou 3 anos. As minhas relações amorosas foram sempre muito atribuladas, e por isso é que estou sem nenhuma relação amorosa já há imensos anos, nem vou dizer há quantos. Mais vale assim (risos).


Hoje em dia sou avó, mas sinto-me mais equilibrada. Também tenho os meus dias, também me passo, também tenho um feitio um bocado inesperado e inconstante. Às vezes por pequenas coisas faço uma grande fita.

Sem dúvida que o ponto alto da minha carreira e da minha vida é agora. Não tenho dúvida nenhuma.

Tantas vezes que me perguntam “não tens saudades?”. Não, está ultrapassado, está feito! Primeiro aquela fama e aqueles amores, tudo desencontrado. Depois ganhar dinheiro, e as “Canções do Século”, e a heroína e aquela p*rra toda. Tudo embora! Depois a luta para voltar, a Billlie Holliday e a Elis Regina, os músicos do jazz e o piano e voz, trios e não sei o quê, fora das tais “luzes da ribalta”. Mas nunca parei.


E agora, pronto: estou mais pesada, tenho uma porrada de rugas com as quais às vezes fico um bocado chateada, estou cheia de cabelos brancos… mas pronto, o que é que se há de fazer?


Mas isso é sinal de que estou viva! Vocês já viram que da banda Atlântida já morreu tanta gente? Amigos da minha vida, p*rra, pessoas amigas minhas, sobretudo mulheres que agora estão com problemas de saúde. Chiça pá, eu tenho é que estar bem e sentir-me bem, porque não preciso de fazer muita força para me sentir bem! A vida obriga-me a que eu esteja bem, as pessoas merecem que eu esteja bem.

Há alguma diferença entre a Helena Águas e a Lena D’Água?


Acho que não, mas dá-me ideia que a Lena D’Água tem que se portar melhor, e a Helena Maria tem de se portar mal, às vezes. É difícil fazer este equilíbrio. Eu como Lena D’Água nunca fiz m*rda, nunca fui cheia de copos ou cheia de ganzas para palco. Nunca na minha vida, por mais que venha algum palerma dizer que “ai, uma vez…”. Mentira, nunca.


Eu também gosto de beber os meus copos, agora no palco? Não. No palco eu sou muito louca, digo coisas que ninguém está à espera, livre e tal, mas não vou para ali fazer figuras.


Como Lena D’Água acho que tenho sempre mantido um foco de me portar bem, de ser exemplo, de ser forte e, mesmo que às vezes esteja triste, não me puxar para baixo. Às vezes comovo-me, então quando recomeçamos a fazer os concertos depois de quatro ou cinco meses [por causa da pandemia], eu tinha uma vontade de chorar… Mas eu tento sempre puxar-me para cima.


A Helena Maria às vezes puxa um bocadinho para baixo. A Helena Maria também diz imensas asneiras (risos), todos os músicos dizem. Às vezes fico um bocado chateada com ela.


Eu às vezes digo que a Helena Maria é mais o ascendente em Escorpião, e a Lena D’ Água é mais Gémeos, acho que é isso (risos).

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