Durante anos, não houve vestígios de desportistas homossexuais profissionais assumidos. Ainda que, com o tempo, se tenham expandido movimentos de apoio à comunidade LGBTQ+, a orientação sexual continua a ser um tabu em vários pontos do mundo - e Portugal não é exceção.
Pelo mundo, alguns atletas têm “saído do armário” mas, em Portugal, o conservadorismo prevalece. De facto, a lista de atletas assumidos é quase inexistente. O judoca Célio Dias – que participou nos Jogos Olímpicos de 2016 - foi o primeiro atleta português no ativo a revelar publicamente a sua sexualidade, apenas em 2018.
Na sequência deste acontecimento, Nuno Pinto, presidente da ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Transgénero e Intersexo), numa entrevista concedida em 2019 para o Notícias ao Minuto, afirma que o desporto é um dos contextos onde há mais homofobia associada:
“Os contextos que são tipicamente mais sexistas, em que há uma maior rigidez e menos abertura à mudança, são contextos que ainda são bastante difíceis para as pessoas LGBTI. Um deles é o desporto, por exemplo.”
Entre alguns dos feitos conquistados pela comunidade LGBTQ+, destaca-se a estreia de Portugal nos Gay Games de 2018. Apesar da iniciativa de inclusividade ter começado em 1982, a participação lusa – e a subsequente soma de seis medalhas – foi um acontecimento muito recente. Parte da equipa, constam os atletas e medalhistas Jonas Grancha, Mariane Valêncio, Pedro Ferraz e Álvaro Cardoso.
Mas apesar da caminhada da aceitação ser lenta, no país, podem notar-se alguns vislumbres de progresso. Nesse campo, há que denotar a criação de equipas inclusivas, como é o caso do clube lisboeta Boys Just Wanna Have Fun (BJWHF). A associação sem fins lucrativos surgiu em 2010 com a intenção de criar um espaço seguro para pessoas que quisessem praticar desporto livres de preconceitos. Abrange as modalidades de corrida, râguebi, voleibol, natação, futsal (Lisbon Panthers, Dark Horses, Lisbon Crows Volley, Lisbon PoolSharks e Lisbon Foxes, respetivamente) e ainda tango. A ideia partiu da equipa de râguebi Dark Horses, mas surgiu a necessidade de expandir e abranger outras modalidades. Seguindo o espírito dos Gay Games, a associação pretende apenas pregar a inclusividade, abrindo os braços a homens e mulheres, independentemente da orientação sexual.
Álvaro Cardoso, além de ser o presidente da associação, conquistou duas medalhas de bronze em natação nos Gay Games e é o treinador da modalidade nos BJWHF. Em entrevista com O Ardina, fala de uns primeiros tempos difíceis na História da associação, focando o caso particular dos Dark Horses.
Excerto da entrevista com o Álvaro Cardoso dos BJWHF
No entanto, o presidente sublinha que a associação foi criada precisamente para fazer frente a estes episódios e para dar visibilidade às pessoas que não se sentiam confortáveis “nos balneários”. Atualmente, refere que a BJWHF é muitas vezes procurada por indivíduos que são vítimas de discriminação noutras equipas. Utilizou como exemplo o caso de um jovem adolescente que desistiu da natação por causa de constantes humilhações na sua equipa e decidiu, dez anos depois, voltar a nadar com os Lisboa Poolsharks.
O treinador de natação adiantou ainda que, no espírito da inclusão e uma vez que a associação expandiu e acolheu pessoas com diferentes identidades de género, o nome do clube vai mudar para All Together For Sports. Declarou ainda que pretendem continuar a dar-se a conhecer e promover eventos inclusivos.
Na mesma linha, Terry Mendes – jogador de râguebi na BJWHF, fala do impacto positivo de pertencer a uma equipa onde não há discriminação: “se me perguntares “ah mas então porque é que não jogas numa outra equipa”, já joguei e tive uma experiência que não foi má, mas sinto-me bem na equipa e no clube onde estou”.
Também afirma ter ouvido comentários depreciativos e homofóbicos, depois da entrada na BJWHF, e resistência de outras equipas, derivada do preconceito. O jogador de râguebi explica que nos Dark Horses encontrou um lugar onde podia praticar desporto com liberdade:
“Somos uma equipa inclusiva e queremos que toda a gente faça parte e que se sintam bem, principalmente, a praticar o desporto connosco. Criamos um ambiente seguro para toda a gente.”
Também Eduardo Pinto - ou Ícaro, “nome de guerra” pelo qual costuma ser tratado - treinador heterossexual dos Lisbon Foxes considera que a associação é tão necessária como quando foi criada:
Excerto da entrevista com o Eduardo Pinto, "Ícaro" dos BJWHF
A criação de espaços seguros como este ainda é recente e acanhada. No entanto, seguindo o exemplo do clube da capital, também no Porto já existe uma equipa de futsal inclusiva: os Douro Bats.
A opressão nem sempre vem de fora
Muitas das vezes, os comentários e insultos têm origem nos colegas de equipa ou nos membros da própria estrutura dos clubes e associações desportivas. Ainda este ano, o treinador brasileiro Ricardo Feretti protagonizou uma situação em que, numa conferência de imprensa, se dirigiu aos jornalistas como “maricas”.
De acordo com o estudo “Out in the Fields” (o primeiro e maior estudo internacional acerca de atletas LGBTQ+ e homofobia no desporto), mais de metade dos atletas do sexo masculino que praticam desportos tradicionalmente dominados por homens, utilizam regularmente linguagem discriminatória – mesmo quando adotam posições positivas em relação à comunidade LGBTQ+.
Jorge Gato é Professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Doutorado em Psicologia e o seu trabalho de investigação incide sobretudo em assuntos LGBTQ+. Explica que o impacto do insulto é maior quando advém de uma pessoa mais próxima.
Excerto da entrevista com o Doutorado em Psicologia Jorge Gato
Para além deste impacto negativo, existe ainda outra questão: a dificuldade acrescida em levar a cabo uma possível denúncia interna deste tipo de abusos, quando são os membros da própria organização que os perpetuam.
Mas não só os atletas são alvo de discriminação homofóbica. Daniel (nome fictício) trabalha como fisioterapeuta numa equipa de futebol da 1ª liga portuguesa. É gay, mas apenas um grupo restrito dos seus colegas de trabalho o sabem.
Admite fazer questão que assim seja, visto que tem “contacto próximo com os atletas e poderia levar a que certas situações fossem desconfortáveis em tratamento”. Apesar de não sentir que “seja difícil ser gay e trabalhar no clube”, Daniel esforça-se por “balançar” a vida profissional e pessoal. Confessa que, no passado, já chegou a condicionar as suas relações por receio das repercussões que pudessem ter no seu trabalho: “por trabalhar onde trabalho, quero ter 100% certeza que é mesmo alguém com quero estar, na mínima dúvida não arrisco a que isso possa comprometer a minha vida profissional”.
Daniel sente que, não havendo “homossexualidade explícita e assumida, toda a gente sabe que existe homossexualidade no desporto masculino, e cada vez mais não se deixam mexer por isso”. Ainda assim, explica que “existem diversos momentos em que, em tom de brincadeira, alguns elementos [do clube] trocam bocas relacionadas com temas homossexuais”.
Na opinião do fisioterapeuta, na área em que trabalha “a homossexualidade não é intolerada”. No entanto, desabafa que “ainda falta muito para ser verdadeiramente aceite”.
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