A série sul-coreana da Netflix serve-se de um cocktail improvável de violência, cores berrantes e personagens cativantes para revolucionar a forma como vemos séries e o mundo que nos rodeia.
Um mês depois da sua estreia na Netflix, “Squid Game” tomou o mundo de assalto e tornou-se no lançamento mais bem sucedido da história da plataforma de streaming. Mesmo não sendo a primeira vez que um conteúdo cultural sul-coreano aterra com impacto no ocidente – o fenómeno da boysband BTS e o oscarizado “Parasitas” são outros exemplos – a verdade é que, com cerca de 111 milhões de fãs, a série criada por Hwang Dong-hyuk marca agora uma mudança no universo do streaming. Ao longo de apenas nove episódios, prova-se que mais do que uma gota num oceano em expansão, a série é uma razão para querer mergulhar bem fundo.
O conceito é simples: um grupo de indivíduos com graves problemas financeiros aceita participar num concurso cuja vitória significa ganhar o prémio final de 45.6 biliões de won (o equivalente a 32 milhões de euros), enquanto a derrota significa a morte. Ao longo de seis jogos tradicionais coreanos, organizados por um grupo anónimo de indivíduos abastados, os participantes acabam por lutar pelo dinheiro que os tirará da miséria e, em simultâneo, pela sua vida.
Com influência óbvia de obras orientais como o livro “Battle Royale”, o enredo, ainda que pouco inovador, vinga pelo realismo quase bizarro com que retrata a violência e a natureza de cada uma das personagens. Ainda que a violência gráfica seja uma das característica mais marcadas da série, é utilizada apenas como um meio para atingirmos o verdadeiro foco: as personagens.
Enquanto evita com mestria ímpar a tentação de se tornar apenas um espetáculo de sangue, “Squid Game” apresenta um leque de indivíduos complexos, multidimensionais e, sobretudo, credíveis.
As reações de cada uma das personagens perante as situações que enfrentam aumenta a imersividade da experiência e faz com que não desviemos os olhos do ecrã, ainda que os fechemos em algumas situações macabras. O protagonista Seong Gi-hun (interpretado pelo ator Lee Jung-jae), é, sem dúvida, a personagem mais bem construída, nunca assumindo o papel de herói convencional. Com todas as atitudes falíveis de qualquer indivíduo, a personagem é um veículo importante para a conquista da empatia do espectador.
Visualmente, os cenários de “Squid Game” contrastam tons negros e brancos com cores berrantes como cor de rosa, amarelo e turquesa. Este contraste faz o paralelismo entre o caráter infantil dos jogos disputados e o resultado macabro que advém da competição. Os cenários são, também, cuidadosamente construídos para transmitir uma sensação de claustrofobia constante que acaba por alimentar o sentimento de desconforto no espectador.
Por último, a crítica social presente na série é sublime. Temas como a desigualdade, a discriminação e o egoísmo são abordados de uma forma sóbria mas acutilante, que espoleta reflexões sobre o mundo, sobre a natureza humana e sobre o papel do Homem no estado atual da sociedade. As repercussões desta crítica têm-se já observado na política sul-coreana. Alguns candidatos às eleições de 2022 têm utilizado imagética que remete para a série na sua campanha e têm-se servido da metáfora da luta de classes para suportar o seu discurso.
Assim, com um leque de personagens verdadeiras e multidimensionais, uma paleta cromática cuidadosamente composta e uma postura crítica, “Squid Game” marca, mais do que um mero sucesso de audiências, um possível momento de viragem no universo das séries e do cinema. Se o público se relaciona tão massivamente com uma série sobre um grupo de pessoas que oferece a sua vida pela possibilidade de ganhar dinheiro, é preciso afastarmo-nos dos ecrãs por um momento e perguntarmos: “Que mundo é este?”. E quando a arte nos deixa a pensar sobre algo tão profundo e tão essencial, a obra é, sem dúvida, especial.
Artigo publicado originalmente no jornal online JPN
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